segunda-feira, 7 de abril de 2008

Precários há muitos


Precários há muitos, mas para os estudantes de medicina a precariedade não chegou ainda à área da saúde e muito menos aos médicos. A precariedade pode não sair nos exames, no entanto, é já uma realidade na saúde, tal como é o fim das carreiras médicas.

As carreiras médicas

As carreiras médicas surgiram em 1971, tendo sido regulamentadas em 1982. Entre muitos outros aspectos, caracterizam-se por exigirem uma formação contínua e terem uma estrutura de progressão que requer a realização de concursos públicos, não existindo progressão baseada na antiguidade.


No entanto, desde 1971 muitos foram os aspectos alterados. Os mais importantes serão talvez, entre outras medidas que surgiram com os vários modelos de gestão hospitalar, a mudança de contratos colectivos de trabalho para contratos individuais. A propósito deste aspecto, será porventura engraçado analisar o Relatório da Comissão de Revisão do Sistema de Carreiras e Remunerações. Trata-se de uma comissão nomeada pelo Governo, presidida pelo Professor Luís Fábrica, dispensada antes de ter concluído o trabalho encomendado… Entre outros aspectos, são enumeradas as desvantagens dos contratos individuais de trabalho (págs. 52 e 53):
· A impreparação dos dirigentes para gerir a sua utilização.
· As desigualdades geradoras de desconforto e desmotivação entre trabalhadores com regimes diferenciados.
· Instabilidade e insegurança que gera o desinteresse de alguns bons recursos.
· Maiores encargos com salários e com descontos para a segurança social.
· Menor mobilidade no seio dos vários serviços da Administração Pública.
· Fraco grau de contratação colectiva gerador de apreensão e saída de profissionais.
· Possibilidade de excessos de prepotência por parte das chefias.
· Diminuição do sentido de serviço público.
· Menores garantias de imparcialidade.
· Aumento da margem para favoritismos.
· Menor estabilidade e continuidade institucional.
· Abuso da utilização do contrato de trabalho a termo tendo em vista ultrapassar os mecanismos legais de controlo do crescimento dos empregos públicos.


Apesar de todos estes aspectos terem sido publicados, as reformas nos contratos na área da saúde não pararam. Em Julho de 2007, o 18º artigo do SNS foi alterado, passando a prever a existência de contratos individuais a prazo (duração não superior a 1 ano) para médicos, enfermeiros, auxiliares, etc. Previam-se igualmente cotas, com cerca de 6700 e 6000 contratos a estabelecer em 2007 e 2008, respectivamente. Tal medida foi apresentada como sendo uma solução transitória até à reforma da Administração Pública, que permitiria lidar com situações especiais sem cair em situações de precariedade.


Contudo, ao olhar para a actual situação do mercado laboral na área da saúde conclui-se mais uma vez que tais medidas neo-liberais tiveram as consequências esperadas…


Os contratos individuais de trabalho

Os contratos individuais de trabalho concretizaram-se como a ferramenta de precariedade, arbitrariedade salarial e destruição de carreiras profissionais que se previa.


Muitos dos contratos individuais que têm sido estabelecidos com médicos não têm muitos pressupostos escritos, muitas das condições são negociadas oralmente, fazendo isto com que em caso de necessidade de renegociação ou reivindicação o caso possa ser complicado.


Outra bizarria desta variedade de contratos assenta no facto de muitos não terem sido publicados, acto indispensável para que sejam considerados válidos. Consequência: muitos dos profissionais de saúde que estão a tentar denunciar a situação arriscam-se, ao fazê-lo, estarem a denunciar a ilegalidade do seu próprio contrato, arriscando-se assim a perderem a sua colocação.


Como se estas aberrações não fossem suficientes, observa-se também o seguinte: no mesmo serviço, existem profissionais com contratos de diferentes condições. No exemplo do CHLO (Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental), os sindicatos têm vindo a recolher os contratos individuais que têm sido feitos e até agora não há 2 contratos iguais. Temos profissionais de saúde com a mesma formação, carga horária e responsabilidades em situação laboral distinta, muitas vezes com ordenados diferentes.


Com a nova lei da Função Pública (Lei Vínculos, Carreiras e Remunerações), antecipa-se a concretização do final das carreiras médicas, assim como a possibilidade de despedimentos colectivos.


As empresas de trabalho temporário
E, não fosse a saúde a área mais rentável a seguir ao tráfico de dorgas e armas, o mercado existente não está a ser descurado…


São já muitas as empresas de recursos humanos na área da saúde que fornecem profissionais de saúde à peça e à escala. Estas empresas possuem, como qualquer outra empresa de trabalho temporário, sites com fichas de aplicação online. Esta é mais uma evidência de que esta é uma área que é tratada por estas empresas como se de call-centers se tratasse… Os problemas na área da saúde serão porventura muito semelhantes aos provocados pela precariedade nas outras áreas, no entanto com a agravante de que os serviços por estas empresas prestados podem pôr em risco a qualidade dos serviços de urgência. Não querendo transformar esta questão num pequeno circo de horrores, é absolutamente importante frisar os seguintes aspectos:
- Nalguns hospitais a escala de urgência apresenta, no espaço destinado ao nome do profissional de saúde que vai fazer aquele turno, não a identificação deste, mas sim da empresa;
- Muitas destas empresas iniciam precocemente o assédio a potenciais contratados, aliciando internos do ano comum, ainda sem autonomia ou formação específica;
- Tudo isto favorece situações descritas no mínimo como promíscuas, acontecendo que alguns directores clínicos de hospitais públicos são também sócios destas empresas de trabalho temporário;
- Algumas direcções clínicas hospitalares escolheram contratar os serviços destas empresas, chegando-lhes a pagar 8-10 vezes mais do que pagariam aos seus profissionais;

Por tudo isto, é premente o debate sobre a precariedade. A precariedade, a instabilidade laboral em serviços públicos tem um resultado: maus serviços públicos, o que é particularmente preocupante nos serviços de saúde públicos, pois degrada as condições de trabalho, a qualidade dos cuidados prestados aos doentes, podendo mesmo pôr em risco a assistência.




Vídeos do debate de dia 19 de Março "A precariedade dá-nos cabo da saúde"
aqui.
Reportagem da Rádio Renascença
aqui.

Sem comentários: